Carta de Primavera
Sabemos que vivemos um tempo de grande mudança. A maior parte de nós pensa que “sofremos” o fim de uma época, que tudo se desmorona e se desagrega. Não se engana completamente, mas atrasa-se… Pois eis-nos já lançados numa outra era, tal como uma semente que na Primavera apenas pede para eclodir. O que há portanto de tão extraordinário nesta renovação é que possuímos já todos os meios para destruir o Universo, e que desta ameaça – tal como, evidentemente, das descobertas que a tornaram possível – vai nascer um homem que merecerá enfim o nome de “Homo-sapiens”. Ele vai efectivamente nascer.
Não temos escolha: entremos em mudança sob risco de desaparecer num ofuscante rasto de fogo. E quem alguma vez se recordará, no espaço interstelar, da aventura falhada do homem terrestre? Não temos escolha: vivamos portanto, quer dizer, nasçamos para nós mesmos e para o que exige este Universo do qual nós um pouco apressadamente nos baptizámos os “mestres incontestáveis”.
Não se pode verdadeiramente esconder como a tarefa é difícil, a que grau ela justifica o pessimismo de certos sábios.
Steven Weinberg, o inventor deste “big-bang” que provoca tanto barulho actualmente – o melhor modelo contemporâneo de nascimento do Universo –, termina as suas pesquisas com uma afirmação angustiante: «O esforço consentido para compreender o Universo é uma das raras coisas que elevam a vida humana acima do nível da farsa e que lhe conferem um pouco da dignidade da tragédia». (Les trois premières minutes de l’Univers. Le Seuil, 1978, p.179.)
De facto como fechar os olhos, não ver o vulcão que construímos sob os nossos passos? Sim, e entretanto se esta mistura, que poderia assemelhar-se a um caldeirão de alquimista no qual borbulham e se entrechocam todos os tipos de substâncias contrárias que nos apresentam a maior parte dos “media”, viesse a transformar-se em ouro? É uma suposição gratuita, mas não será ela a única aceitável?
O meu optimismo não é uma quietude beata… é um optimismo que visa o “melhor” e, nesta Primavera, é necessário visá-lo a cada respiração, em cada objecto. Realizá-lo, realizar-se a si mesmo nesta opção cultivada sem interrupção.
Como? Desde logo analisando bem cada situação, como que adivinhando nela o que ela trará de melhor: a isto se chama admirar, maravilhar-se! Em seguida, deste olhar de verdade e de solicitude, retirar os ensinamentos e a energia que vão permitir agir.
O Universo é beleza pois ele é o pensamento do grande Sopro, do grande Ki como dizem os japoneses, manifestado numa substância, oferecendo-se assim à decifração do espírito humano: assim aparece o Cosmos ao olhar das tradições. Não é de espantar que os poetas tenham saudado a menor das suas modificações, das suas próprias emoções de desespero ou de certeza. Como nos diz Paul Eluard:
«Disse-to pelas nuvens
Disse-to pela árvore do mar
Por cada onda pelos pássaros entre as folhas (…)
Pelo olho que se torna rosto ou paisagem (…)
Todo o carinho, toda a confiança se sobrevivem.»
(trad. livre)
E Baudelaire, em « As flores do mal » diz-nos :
A Natureza é um templo onde vivos pilares
Pronunciam por vezes palavras ambíguas;
O homem passa por lá entre bosques de símbolos
Que o vão observando em íntimos olhares.
(trad. de Fernando Pinto do Amaral – Assírio e Alvim, 1992)
Esta poesia, que pode parecer a alguns como puramente profana, cumpre na realidade uma função sagrada. Este olhar de admiração, no sentido profundo do termo, é portanto reconhecimento da sacralidade do Cosmos. Sacralidade escondida, bem para lá das aparências temporais e espaciais: sacralidade que reside como um germe nele deixado pela sua origem divina, um rasto de luz sempre visível na noite dos tempos…
Sim, nós temos uma responsabilidade cósmica, tal como já acima disse, neste renovar do homem.
O astrofísico Hubert Reeves diz-nos num dos seus livros* : «É toda a “experiência-Universo” que se joga em nós e por nós. O conhecimento do Cosmos é muito mais do que um luxo para o homem culto. Ele é alicerce de uma consciência cósmica. Ele ilumina a pesada responsabilidade que nos cabe». E diz mais longe, ao evocar a eventualidade de uma destruição radical : «Não podemos continuar a brincar às guerras. É preciso salvar a música». (« Patience dans l’azur ». Pags. 160 e 161
– Ed. du Seuil. Paris.1981)
E porque não, depois destas reflexões sobre a renovação primaveril, seguir ainda um conselho deste astrofísico Canadiano que nos convida a uma experiência que passa pelo corpo, pelos sentidos, que se abre à intuição e nos mergulha na felicidade…? Venham a TenChi numa tarde de Primavera (se o tempo o permitir). «Estendam-se no chão, à noite, longe das luzes. Fechem os olhos. Depois de alguns minutos, abram-nos para a abóbada estrelada. Sentirão uma vertigem, colados à superfície da vossa nave espacial, sentir-se-ão no espaço. Apreciem longamente essa embriaguez».
Boa Primavera
Dojo TenChi, 21 de Março de 2009
Georges Stobbaerts