Arte do Movimento e a Meditação

*A arte do movimento pode servir como linguagem da realidade*

(P) Fala muitas vezes da mente. Mas quando executo um Kote-gaeshi ou um nikkyo, o que tem a mente a ver com isso?

(R) Quando falo do mental, falo da mente justa. Para mim um movimento justo e uma atitude da mente justa.

(P) Mas o que é a mente?

(R) E difícil defini-lo, mas podemos dizer que a mente está nas actividades que o ocupam. Não podemos apercebê-lo fora das suas actividades. A tradição indiana cita cinco actividades que podem ser justas ou não; mal entendidas elas podem criar vários problemas no tempo. São elas:

• a compreensão
• o engano
• a imaginação
• o sono profundo
• a memória

Claro que estas actividades possuem as suas características próprias, embora frequentemente não sejam nem evidentes nem visíveis. Podemos com um pouco de atenção reconhecê-las. A nossa atitude e o nosso comportamento vão depender das que forem preponderantes. Num movimento seria a compreensão profunda que deveria brotar. A mente deve estar ao nosso serviço e não o inverso … E preciso aprender o caminho da compreensão profunda.

(P) Aceito essa concepção, mas porque cria a mente todas essas divisões?

(R) Isso faz-me lembrar a pergunta de um participante nas Jornadas de Yoga em TenChi. Queria saber se a prática da procura interior diferia da vida quotidiana … (isto é, da minha vida privada). De facto não posso separar nada. Dividir é natureza da mente. Não há nada de mal na divisão, mas a separação afasta o real. A REALIDADE É UMA. O UNIVERSO É UM. Há opostos, mas são complementares. É por isso que digo frequentemente e sobretudo para mim mesmo (risos) : deve-se lavar a mente como uma esponja …

(P) Perante um sabre, tem medo?

(R) Não tenho medo mas mantenho-me vigilante. É preciso pela prática aprender a libertar-se das emoções negativas. O medo é mais uma vez a visão da mente não pacificada. Desembaraçado dessas emoções (até o desejo de bem executar uma técnica deve estar ausente) o resto vem naturalmente …A mente deve purificar-se por meio de uma corrente de sensações puras. Plantar uma árvore, por exemplo.

(P) Não vejo a relação entre plantar uma árvore em TenChi e o sabre.

(R) Por favor não se precipite! Quando está sentado calmamente, toda a espécie de coisas pode vir a superfície. Não faça nada, não reaja; elas vão-se embora tal como vieram …A única coisa que importa é a plenitude da mente. Então agirá em plena consciência e não sob a ameaça ou o medo.

(P) Quando diz consciência refere-se ao Eu da vida de todos os dias?

(R) Quando digo consciência é a consciência total de Si-próprio. Aqui é preciso ter cuidado com as palavras. Falo do eu que é o único observável, pois o observador do Eu está para além da observação. O Eu real não pode ser observado.

(P) E o medo da morte?

(R) Está outra vez a falar do medo. Para aquele que se conhece a morte é um acontecimento feliz! A morte não passa de uma mudança de estado. Existe um processo de desintegração, que é preciso aceitar. O corpo é apenas um veículo da vida. Mas, quem é que nasce, quem é que morre de verdade?

(P) Fala muitas vezes da beleza de um movimento. Em TenChi procura sempre a beleza das formas … ! Para si, a beleza é uma finalidade?

(R) Porque fala de finalidade? A finalidade implica o movimento. Não, a beleza não é uma finalidade. Uma flor que desabrocha na Primavera não procura a beleza, ela está na sua natureza. Penso antes na alegria; porque a alegria é beleza. Quando desloco uma pedra com o Paulo, há um arranjo. Quando a pedra está colocada como convém há um sentimento de bem-estar… É talvez isso a beleza.

(P) Há muito tempo que ensina e tem tido muitos alunos. Que lhes trouxe?

(R) É difícil responder assim de uma assentada. Á maioria, nada. A outros uma condição física melhor. A alguns uma profissão, um meio de ganhar a vida. Mas na maior parte dos casos não tive tempo de lhes transmitir algo de verdadeiramente importante. A paz mental, por exemplo. Esses jovens eram de uma natureza agitada. E é preciso tempo, compreende?

(P) Pensa que foi prejudicial a alguns deles?

(R) A sua pergunta é pertinente. Certamente. Não sou um sábio! Mas cada caso é um caso particular; e pelo que me diz respeito, fui sempre guiado pelo amor.

(P) E os seus alunos, prejudicaram-no?

(R) Bem, não quero justificar nada .. Também me prejudicaram bastante. Alguns executaram actos sem o meu aval, embora não tivessem experiência real da sua prática. lsso só pode resultar em dificuldades sem fim: terão como recompensa a sua própria amargura…

(P) Isso atrasou o projecto TenChi ?

(R) Sim e não. É difícil ver o que se passa sem interferir. Muitos alunos mo censuraram. É difícil ver o que acontece e não ser afectado. E no entanto, assim tem de ser. Tal como passam as estações. Mas é sempre a verdade que acaba por triunfar. E os alunos é nos seus próprios erros a que compreenderão o verdadeiro ensino.

(P) Sabe perdoar?

(R) Sempre! O perdão faz parte do amor. Não é concedido a um e recusado categoricamente a outro. Mas o perdão verdadeiro exige uma mútua compreensão, e para tal é precise tempo.

(P) Que fazer então em caso de conflito?

(R) Perante a atitude conflituosa de um aluno é preciso ter a paciência de esperar que ele a ultrapasse sozinho. Não devemos apegar-nos a estas pequenas futilidades da vida. Deixemos a gravidade agir, o fruto amadurecer, e ele cairá sozinho. (risos)

Quando penso no olhar da criança que encontrei nos subúrbios de Bombaim, com uma flor na mão, deixo passar os conflitos e fico à espera, vigilante!

(P) A espera de quê?

(R) Da maturação. Espero que a inércia e a agitação cessem, e que surja uma verdadeira procura, sem a qua! não há nada a fazer… Sei que é preciso tempo, e sem seriedade não há procura interior.

(P) Vejo frequentemente alunos que praticam há muito tempo e que dominam o gesto, isto é, a técnica. Refiro-me aos cintos-pretos, em particular aos mais antigos, as estrelas ou os mestres ..

(R) Bern vejo. Pode-se ser antigo praticante, possuir um bom movimento, uma boa técnica, e não perceber nada. Aquele que não compreendeu o sentido da prática, não compreende nada; não despertou para a consciência do coração. O homem desperto opera por meio do corpo, o qua! deve ser reflexo da sua interioridade, e não para desenvolver o seu Ego.

É difícil compreender o movimento TenChi; é essa unidade que devemos sentir mesmo sem a poder explicar …

Não esqueçamos que a técnica deve servir de suporte ao domínio da mente: é esse o verdadeiro caminho: Do.

Os antigos de quem fala, os cintos – pretos não entenderam nada. Fazem-me lembrar uma história chinesa:

“Um arqueiro exercitava-se a atirar com o arco, com uma taça cheia de água sobre o cotovelo esquerdo. Esticava a corda com a mão direita, ágil e fortemente, disparava, e de imediato colocava outra flecha, rápido como o relâmpago, sem interrupção, esgotando as flechas do carcaz, sem esforço, com um belo rosto impassível, e sem que a água da taça bulisse. O Mestre disse-lhe: O seu tiro é de um arqueiro todo concentrado no tiro, mas é um tiro sem substância. Deveria ser mais natural.

Venha comigo e veremos se ainda conserva essa presença de concentração. – O Mestre colocou o aluno próximo de um abismo, de costas voltadas para a ravina impressionante, na ponta dos pés, com os calcanhares no vazio. O verdadeiro arqueiro deve inclinar-se um pouco para trás para disparar, mas, cheio de vertigens ele caiu por terra a tremer. – O Sábio disse: A verdadeira mestria mergulha o seu olhar nas profundezas do Céu, nas profundezas da Terra (Tenchi), nos horizontes longínquos sem medo. Os seus olhos parecem-me perdidos, se disparasse não atingiria certamente o alvo.”

O verdadeiro estudo do Aikido e o domínio do nosso próprio espírito.

(P) As graduações nas Artes Marciais têm alguma significação para si?

(R) Evidentemente. Mas as graduações não fazem o homem. Hoje em dia as graduações Dan perderam a sua verdadeira significação. Um amigo de longa data, já falecido, dizia: “o cinto é a vontade. No fim do caminho, abandona-se a vontade ao grande sopro, e assim podemos libertar-nos da capa da mente, do keikogi das ilusões. Mas antes de desapertar o cinto, é preciso tê-lo … Um keikogi sem cinto não passa de um pijama, e o caminho não se percorre a dormir. Que o nó da vossa decisão não afrouxe, que ninguém possa desatá-lo, a não ser vós. Quanto à cor e ao Dan, deixem isso às crianças e aos militares … ”

Que a vossa ação esteja em equilíbrio no local invisível da vossa via (Do), como o vosso corpo está em equilíbrio sobre o centro Seika Tanden (Hara). A preocupação dos nossos interesses, graduações ou outros quaisquer, faz-nos perder o sentido da realidade.

É preciso suprimir o Ego para fazer brotar a nossa verdadeira natureza.

(P) Se não existir mais que a beleza do gesto, a que leva a prática do Aikido e do Yoga?

(R) A prática deve fazer-se desinteressadamente; não devemos preocupar-nos se o movimento é belo ou feio. As técnicas devem, evidentemente, ser correctas e aprendidas com um professor competente. Este deve levar o aluno a uma abertura de espírito que permita a compreensão justa. Mas é preciso uma prática sincera e infatigável. E quem é que pratica assim hoje em dia?

(P) Fala de prática desinteressada. Porquê?

(R) Aquele que alcançou a compreensão desinteressada deixa de se importar com futilidades. Só então a mente justa pode ser dirigida para uma realização interior profunda. Uma alegria puríssima sobrevirá na prática. Sentir a harmonia no seu próprio corpo é muito diferente de a ver ou de falar nela.

(P) Pode-se, sem praticar, atingir os estados de júbilo interior de que fala?

(R) Pode, mas é raro. É difícil manter continuamente o espírito desperto e desprendido.

(P) Fala-se muito da respiração: está ligada a mente?

(R) Quando se fala da mente, esquece-se frequentemente o extraordinário instrumento que é a respiração. Quando estamos calmos ou atentos a respiração é tranquila; uma respiração agitada revela uma mente confusa. As nossas atitudes refletem a nossa capacidade de atenção; a respiração é o instrumento da atenção; sirvamo-nos dela.

(P) Fala de um Eu que não pode ser observado nem definido, e, no entanto fala dele…

(R) Quando falo do Eu (SOI), falo daquilo que não é, pois defini-lo é impossível. Também não pode ser descrito. É difícil responder a isto rapidamente. O que posso dizer, com toda a humildade, é que ele constitua o cerne de tudo o que nos rodeia, e que, se tudo depende dele, ele não depende de nada. É uma espécie de eixo imóvel que permite o movimento, Qualquer que seja a natureza dos nossos conhecimentos- estudo, arte ou accão- encontramo-lo sempre no centro das manifestações. O Eu (SOI) é o centro do movimento.

(P) Mas onde está esse centro?

(R) Todos aqueles que estudam i movimento, o yoga ou o Aikido, sabem que tudo o que se move tem por centro o vazio. Quando digo um vazio quero dizer simplesmente que não há nada que se possa chamar alguma coisa ou alguém. Aquele que verdadeiramente praticou o movimento em profundidade, o Aikido por exemplo, conhece experimentalmente a sua lei, a lei da acção. Para mim a lei da acção é uma Arte, que pode englobar, eventualmente, as Artes ditas Marciais.

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